quarta-feira, 12 de outubro de 2011

ARTIGO DE JULIANA MEDEIROS (PlanetaOsasco)

“Falo quase todos os dias (por Skype) com a Líbia”

Qua, 12 de Outubro de 2011 10:12

Líbia – Um relato pessoal

por Juliana Medeiros,  no blog Substantivo Comum


Falo quase todos os dias (pelo Skype) com a Líbia. Amigos em Trípoli, Sirte, Bani Walid, Sebha, Misrata.. também muitos refugiados em Túnis, no país vizinho. Gente que conhecia há alguns anos, mas a maioria conhecia há pouco, quando os conflitos começaram. Uma rede que se formou, de solidariedade e respeito mútuos, entre líbios e pessoas comuns (muitos jornalistas, como eu) que verdadeiramente queriam saber notícias sobre o que acontecia na Líbia e que iam encontrando pessoas, parentes, amigos, alguém que conhecia alguém.

O motivo? Não há até o momento notícias confiáveis nas grandes redes, a maioria de nós não confia nelas. Nós por força do óbvio, os líbios, por pura indignação (com as mentiras constantes). É fácil entender. Não é possível para qualquer rede de televisão em países que estão bombardeando a Líbia fazer uma cobertura minimamente imparcial. Dentre os outros, a maioria esmagadora, inclusive o Brasil, em função do custo de manter um correspondente ininterrupto, apenas repetem o que dizem as mesmas agências de notícias dos países envolvidos com a ação militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN.

Há uma grande rede de notícias do mundo árabe, Al Jazeera, que até esse momento, vinha sendo o fiel da balança, o grande “intérprete” do mundo árabe (e em alguns casos, do contexto islâmico) para o mundo ocidental. Até que o país “alvo” fosse um inimigo do príncipe do Qatar, dono da rede Al Jazeera e… membro da OTAN! Restam apenas duas com coberturas feitas in loco: a RT, da Rússia, e a TeleSur, latinoamericana. As duas, dando um show de cobertura desde o início dos conflitos na Líbia, mas silenciadas por seus tamanhos diminutos, em relação à outras redes, ou mesmo pela acusação de “cúmplices” de Gaddafi (ou seja, não está do lado de Obama, Sarkozy ou Cameron, está contra). Nessa guerra midiática onde a maioria serve a interesses políticos e econômicos, um pouco de inglês e o acesso à internet, permitem a comunicação direta com as fontes, sem intermediários.



Um desses amigos é esse na foto acima. Mohamed Magam, em foto tirada na cobertura do Hotel que sediava a imprensa, em Tripoli, com a praça em frente tomada pelo povo e suas bandeiras verdes. Um estudante de ciência política da Universidade de Trípoli, que pegou em armas para defender sua cidade e morreu, não vítima de um combate direto com os ditos “rebeldes”, mas por via aérea, atingido por um míssel da OTAN, que matou também vários amigos que estavam próximos a ele.

Depois de passar meses conversando com esse garoto, de 23 anos, um líder estudantil, empolgado com a esperança, aliás, com a certeza na vitória de seu país, contra o que ele chamou de “conspiração”, ou uma “tentativa de manchar a imagem” da vida que tinham por lá, foi inevitável uma crise de lágrimas quando soube de sua morte. Meu irmão mais novo tem a idade dele e sua única preocupação é tocar bateria em sua banda de rock.

Demorei a acreditar que era verdade. Tive que perguntar, no Facebook, a vários de seus amigos e obter uma confirmação de um que falou com sua mãe, por telefone, semanas depois. Olho para essa foto e penso em como estamos vivendo em um mundo estúpido…

É inacreditável que homens como Obama ou Sarkozy durmam tranquilos em seus travesseiros com tantas mortes sob sua responsabilidade. É inacreditável que o planeta inteiro ainda aceite os mesmos argumentos usados na guerra do Iraque e assista pela TV, impassível, ao genocídio que acontece na Líbia há meses. Bush configurou-se em Obama, personagens diferentes, para países diferentes, mas uma mesma história de morte e apropriação de recursos que alimentam sistemas financeiros falidos e retroalimentam a indústria bélica – eterna salvadora do modelo capitalista – agora com a nossa audiência globalizada, em horário nobre. Há muitos níveis de omissão e conivência com o que acontece agora na Líbia. Como sempre, precisamos que ataquem nosso quintal para sermos capazes de nos importar.

E lendo o que escrevi acima, vejo o quanto é difícil usar uma linguagem “jornalística” ou “racional” para descrever tudo isso. Mas aceitei esse desafio de um amigo “do exílio”, de tentar pelo menos blogar os relatos que recebo, talvez como forma de acompanharmos mais de “perto” as transformações, agora inevitáveis, a que o povo líbio está submetido, e que definitivamente NÃO estamos assistindo pela TV. Aliás, parte da minha indignação, de cidadãos líbios e de profissionais de imprensa independentes, tem sido a observação da atitude submissa e conivente de colegas que em nome da preservação de seus empregos, incorporaram o discurso geral. Mas isso caberia em um livro, talvez. Um case e tanto.

Por outro lado, percebo o quanto é surreal que a informação neste mundo globalizado nos permita vermos um filme em nosso sofá, sabendo que alguém do outro lado, passa a noite em claro em meio a bombas de verdade. E, sim, eu sei que Gaza já vive isso há décadas, hostilizada quase que diariamente por soldados das forças especiais israelenses. Mas a Líbia não vivia uma guerra, não vivia uma ameaça mínima que fosse, o povo sequer contava com uma, viviam no país reconhecido pela ONU em 2007 como o maior IDH de seu continente, reconhecido como “um dos maiores combatentes do terrorismo”, um lugar sem impostos, aluguéis, com TODO o aparelho de estado público e gratuito, com água abundante no meio do deserto do Sahara, de maioria islâmica (sem embates religiosos, como acontece em outros países do mundo árabe) e bem, creio que já é possível perceber que essa história de “povo querendo ser salvo de um ditador sanguinário” já demonstrou ser uma das maiores furadas da história contemporânea. Um engodo, que grande parte do mundo comprou e que resultou em um país arrasado e agora alvo de uma disputa de butim. Jihadistas, membros da Al Qaeda (irônicamente alçados à “parceiros” dos países da coalizão), mercenários, líbios opositores, tropas britânicas e do Qatar e, claro, Sarkozy e Obama que já sabem qual será sua cota na partilha.

Hoje falei com a viúva inconsolável de um dos amigos mortos na Líbia. Um bem humorado professor universitário, orientador de mestrados na área de pesquisas em biologia – que há poucos meses me dizia pelo Skype que tentava ajudar seu governo a combater uma ainda improvável invasão estrangeira, enquanto preparava provas para seus alunos, imaginando como a maioria dos líbios, que tudo não passaria de negociações diplomáticas. Médico veterinário e biólogo, passou cerca de oito anos se especializando no Brasil, na USP e na UnB, entre os anos 80 e 90. Amava o Brasil e aqui fez amigos, como eu e muitos outros. Eu sequer sabia o que dizer para ela, me limitei a ouvir seu desabafo.

De Trípoli, ela informou que nada voltou ao normal. Pelo contrário, o caos está por todos os lados. Não há previsão de retorno às aulas, não há comida, remédios, sobra medo..

O “novo governo” que se anuncia pelos meios de comunicação num embate midiático constante com membros do governo Gaddafi (e o próprio) – que também não deixam de ocupar espaços na mídia local e do mundo árabe – mantém controle de alguns bairros com neuróticos sentinelas que atiram em tudo que vêem auxiliados por bombardeios constantes da OTAN que “abrem” caminho para as milícias, numa ação coordenada inédita na história humana. Há também muita tensão com corajosos soldados do exército líbio que teimam em seguir na resistência mesmo sem as ordens de seus comandantes.

Minha amiga sequer sai de casa há meses. Sem o marido, tenta proteger os dois filhos, ainda menores de 14 anos. Não há esperança, apenas apreensão. Quando ele ainda estava vivo, depois de iniciada a invasão estrangeira de fato, sua família se limitou a permanecer por semanas totalmente incomunicável, em silêncio, em seu apartamento, esperando que não fossem atingidos pela artilharia antiaérea dos “rebeldes” que miravam aleatoriamente nos prédios residenciais de Trípoli.

Depois de sua morte e de passar alguns dias tentando sepultar o companheiro, numa capital mergulhada em guerra civil, só lhe restou manter-se no apartamento escondida com seus filhos e apenas esperar que novos ventos tragam a tranquilidade necessária para realizar as cerimônias islâmicas de despedida do seu ente querido ou simplesmente, tocar a vida em frente.

Soldados do CNT (o autoproclamado “Conselho Nacional de Transição”) que rondam Tripoli, em sua maioria, não são líbios mas mercenários contratados pela OTAN, Qatarianos e soldados das forças especiais britânicas. Existe uma dificuldade na comunicação piorada com a tensão constante. Grande parte dos milicianos, segundo ela, apesar de falarem árabe, não são nativos (como se fossem os portugueses de Portugal, para nós) por isso muitas discussões acabam em morte. É uma fórmula trágica fácil de imaginar. Eles mantem guarda nas ruas, para evitar que algum cidadão se “indisponha” com o “novo” regime que estão implantando. Qualquer resistência termina em bate-boca e agressões que chegam à morte com facilidade num país em guerra e sem qualquer policiamento ou estrutura de segurança em funcionamento.

Ela relatou ainda que milicianos do CNT tentam identificar ex-funcionários do governo anterior para interrogatórios e execuções sumárias. Tudo isso, com o silêncio das “Nações Unidas”. Aliás, com a garantia de assento no Conselho de Segurança da ONU para os assassinos!

Nesse momento a maioria da população deseja apenas que a guerra acabe logo, seja com quem for. Não aguentam mais a pressão. Querem suas vidas de volta. Ao mesmo tempo, parte da população silenciada durante o dia, impedida de hastear suas bandeiras, forma redes de denúncia na internet (a maioria em língua árabe) e grupos de resistência noturna para sabotar as milícias do CNT.

Que povo é esse que resiste há meses à tão “esperada salvação”? É impressionante o discurso construído para legitimar o genocídio das forças estrangeiras sobre a Líbia! O único resultado visível da “ação humanitária” da OTAN nesse país africano, são corpos espalhados pelas ruas, hospitais em colapso e um medo incessante. Uma GUERRA incessante… como podemos acreditar numa “liberdade” há tanto tempo sonhada com as imagens espalhadas na internet de violência, desespero, tragédia, diariamente?

Há alguns anos acompanhava a guerra no Líbano pela TV, com um amigo libanês que falava da sua impotência em ver tudo de longe sem poder fazer nada. Agora entendo o que é isso.

Uma única decisão mudaria o curso dessa história: cessar o investimento na morte. Somália, Etiópia, Haiti, poderiam ser alimentados por anos com o que estão investindo para destruir a Libya! Mas esse, aqui no mundo real, não é o objetivo dos senhores da guerra.

Quando estive na Tunísia, fronteira com a Líbia, falei pela última vez com Mohhamed pelo Skype, avisando que pretendíamos chegar logo a Trípoli e que poderíamos conversar pessoalmente. A OTAN tinha iniciado o bombardeio dos postos de fronteira, o início ao cerco, mas nós não tínhamos ainda a dimensão do que estava por vir. Quando comentei que era chato aquele “atraso”, ele me respondeu com um smile ao final, “don´t worry, you will pass the border soon”. Tenho certeza agora de que nós atravessamos, cada um à sua maneira, essa fronteira.

http://www.planetaosasco.com/oeste/index.php?/2011101223209/Nosso-pais/juliana-medeiros-falo-quase-todos-os-dias-por-skype-com-a-libia.html

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