do Jornal Hora do Povo
Recentemente, a jornalista argentina Stella Calloni, "perante a desinformação reinante no caso da Líbia", republicou a entrevista que realizou com Muamar Kadafi, originalmente aparecida em 1984 "no jornal UnoMásUno, do México, na Agência Nueva Nicaragua e no Nuevo Diario, da Nicarágua; numa versão especial, na revista El Periodista de Buenos Aires. Nos anos 90, uma nova versão com algumas perguntas com base em outro encontro, em 1986, foi publicada pela Revista Siempre, do México, junto a uma série de Crônicas sobre a Líbia".
Recentemente, a jornalista argentina Stella Calloni, "perante a desinformação reinante no caso da Líbia", republicou a entrevista que realizou com Muamar Kadafi, originalmente aparecida em 1984 "no jornal UnoMásUno, do México, na Agência Nueva Nicaragua e no Nuevo Diario, da Nicarágua; numa versão especial, na revista El Periodista de Buenos Aires. Nos anos 90, uma nova versão com algumas perguntas com base em outro encontro, em 1986, foi publicada pela Revista Siempre, do México, junto a uma série de Crônicas sobre a Líbia".
Dispensamo-nos, leitor, de outros comentários. A entrevista – que apresentamos em versão condensada - é suficiente para um perfil do homem assassinado brutalmente em Sirte, há poucos dias. O texto que serve de epílogo também é da autora da entrevista.
STELLA CALLONI
Setembro de 1984.
De pé, na entrada de uma enorme tenda, como as que existem no deserto, o coronel Muamar El Kadafi me recebe sorrindo, com a mão estendida em gesto de amizade. Sopra um vento suave nos arredores e há um pequeno fogareiro onde ardem restos de lenha acesa já um tempo atrás. Anoitece em Trípoli. Kadafi fica descalço ao entrar na tenda de cores brilhantes. Quase no centro da mesma há um escritório simples, coberto de livros e revistas do mundo todo.
Ao lado, uma biblioteca também simples. Ele é um homem alto, de movimentos rápidos e sorriso franco e espontâneo. Veste um "overoll", similar aos que utilizam os pilotos. Seus traços são marcados, algo típico nos homens do deserto e dão a seu rosto uma força especial.
Havia esperado durante dias quase sem esperanças a entrevista, para a qual tinha viajado diretamente desde a Nicarágua, como correspondente do periódico UnoMásUno, do México. Enquanto esperava a entrevista, tentei conhecer o povo líbio, para entender a liderança de Kadafi e sua particular revolução da Jamahiriya Árabe Líbia Popular Socialista, uma tentativa de socialismo com elementos muito próprios.
Neles se percebia a profunda influência do líder egípcio Gamal Abdel Nasser, tão importante na história dos países árabes e na sua relação com o Terceiro Mundo.
Stella Calloni: Coronel Kadafi, poderia nos descrever a situação do seu país ao se produzir o triunfo da revolução que o senhor encabeçou com outros jovens militares em setembro de 1969?
Kadafi: Antes da Revolução podia se considerar a Líbia como a muitos países cuja independência é falsa. Alguns países, que inclusive são membros das Nações Unidas, têm uma falsa independência e também existem nações no Movimento dos Não Alinhados cuja independência é falsa. Assim ocorria na Líbia, então.
S.C. - Dentro dessa situação de falsa independência que o senhor descreveu, como eram as condições do povo líbio, como vivia?
Kadafi: O povo tinha uma situação muito instável. Só uma minoria vivia em condições especiais, com grande estabilidade e riqueza. Eles tinham grandes casas. O resto do povo vivia em tendas. Poderia se dizer que só éramos pastores. Não havia esperança de futuro. Não existia desenvolvimento na agricultura, nem atendimento de saúde, nem trabalho produtivo. Nenhum tipo de desenvolvimento.
Somente se extraía petróleo, e naturalmente o papel das empresas estrangeiras era então desfrutar ao máximo dos bens produzidos pelo petróleo, e de todas esses lucros. O povo não recebia nada, nenhum beneficio. Havia muita pobreza e atraso.
Naqueles momentos o povo líbio vivia sob um regime de independência figurada. Na realidade, o povo líbio vivia como um estranho, como um estrangeiro em seu próprio território. Estava submetido a um regime colonial. Havia uma autoridade colonial. Era uma situação muito primitiva, com absoluta miséria para o povo. Nós, os líbios, não éramos donos de nossas próprias vidas.S.C. - Foram essas condições sociais do povo que inspiraram o senhor e os jovens militares a realizar a revolução? Poderia descrever aqueles momentos e quais eram os seus sentimentos, o íntimo dos seus sentimentos?
Kadafi: Quanto aos sentimentos pessoais... eu ainda tenho essa sensação estranha. Por um lado, tínhamos a esperança de poder conseguir a vitória e dessa maneira realizar nossos sonhos.
Por outra parte estava o temor ao fracasso, a não conseguir o que tínhamos nos proposto, que era libertar a nosso povo. Era uma sensação estranha, entre a alegria e a emoção do que estávamos fazendo, a possibilidade do triunfo e também a incerteza ante a possibilidade de fracassar.
Eu lembro muito bem dessa estranha sensação. Finalmente, triunfamos. Sabíamos que podia nos esperar a morte, que estávamos arriscando a vida por libertar o nosso povo.
Ter estudado a realidade, o sentimento dessa realidade, a situação dos oprimidos, tudo isso, e o colonialismo ao que estávamos submetidos, nos levou a realizar a revolução. Foi uma questão muito nossa, muito interna, algo original e não tradicional a forma desse movimento para realizar a revolução. Essa revolução tinha que ser profunda e séria, a favor da justiça verdadeira e do verdadeiro poder do povo. Nasceu de um sentimento de justiça.S.C. - Além dessa decisão de libertar a Líbia do colonialismo, vocês, os militares jovens de então, estavam influenciados pelos seus próprios heróis, como Omar El Muktar, ou por líderes árabes, como Gamal Abdel Nasser?
Kadafi: Nasser foi um combatente pela união dos países árabes, pela unidade de nossos povos. Ele participou, viveu essa realidade, a interpretou, conhecia muito profundamente nossas nações, nossa história comum. Influenciou, sem dúvida, a juventude de então. Seus frutos se colhem ainda hoje. Lutava por essa unidade que ainda hoje tentamos conseguir. Foi o único homem na história contemporânea dos árabes que pôde concretizar essa unidade. Naqueles momentos, ele resumiu os ideais e as aspirações da pátria árabe.
Nasser também suportou os males da nação árabe. Nós o consideramos como a pessoa que pôde conseguir expressar nossos ideais, conhecer e suportar nossos males. Esse é o segredo do lugar que ocupa Nasser no coração da juventude árabe. Quando Nasser expressava claramente as aspirações dos países árabes, os Estados Unidos se opuseram à iniciativa de unidade, o que fez com que Nasser se dirigisse à União Soviética, com a qual estabeleceu uma relação favorável e livre de ambições colonialistas e bases militares. Prova disso é que quando Nasser morreu, e o Egito quis romper relações com a URSS, o fez facilmente. A Rússia não se opôs e não vimos rastro de colonialismo.
Existia influência de nossos heróis. Omar El Muktar, a quem chamaram "o leão do deserto", lutou heroicamente contra o colonialismo, contra o fascismo. Ele foi uma vítima do colonialismo. Seu exemplo está muito vivo no povo líbio. As lembranças daqueles momentos, também. Milhares de líbios morreram nas mãos do nazismo e ninguém o lembra.S.C. - Com relação ao processo revolucionário, surge de suas palavras que os objetivos da revolução de 1969 estavam dirigidos a produzir uma profunda mudança de estruturas a favor da população oprimida pelo colonialismo, a retomar os velhos ideais da unidade árabe e dar passos para uma verdadeira libertação... Quais foram as principais dificuldades que teve de enfrentar a Revolução nos seus começos, além da eterna pressão estadunidense?
Kadafi: Poder-se-ia dizer que houve um enfrentamento entre o poder reacionário e o poder revolucionário. Alguns queriam voltar a recuperar o poder para as minorias. Nós respondemos com a única resposta que pode se dar: o poder do povo. Em algum momento, quando se descobriram as manobras dos traidores, o próprio povo tomou em suas mãos a justiça. O melhor controle para essas situações é o próprio povo com o poder e as armas em suas mãos.
S.C. - De acordo com alguns analistas, a Revolução nasce verdadeiramente em 1975, quando se cristalizam os primeiros postulados da mesma, e oito anos depois da tomada do poder, em 2 de maio de 1977, deu-se a conhecer o documento da autoridade do povo. Como nasceram os fundamentos do que você chama a Terceira Teoria Universal que expõe no Livro Verde?
Kadafi: É evidente que nossa revolução é original, única, não tradicional, porque nasce do povo mesmo. Pode se dizer que emana do coração dos desesperados, dos oprimidos, dos tristes, dos humildes, da própria luta por um futuro melhor para a humanidade. Anunciamos a era das massas, a Jamahiriya. Esse pensamento trata do problema do ser humano.
S.C. - Com base nessa ideia, poderia me explicar como é a forma de governo na Jamahiriya?
Kadafi: A Jamahirya existe quando um povo se auto-governa, quando realmente governa o povo. Não existe presidente. Essa não é uma organização vertical. Existem os Congressos Populares Básicos, os Comitês Populares nas uniões, nos sindicatos e toda outra organização profissional, e finalmente o Congresso Geral do Povo. Se o povo pratica seu poder através dos Congressos Populares, instalados por zonas, por bairros, utilizando esse sistema, cada cidadão pode expressar sua opinião e discutir política internacional e política interna. Decide planos, orçamentos, acordos, assuntos de guerra e paz. Ninguém o representa. O mesmo povo discute seus assuntos. Todas as opiniões são anotadas. Não importa credo, nem que seja religioso ou que não o seja. Todos podem e devem opinar.
Depois, essas decisões se executam através dos Comitês Populares. Eles substituem a administração governamental clássica. São eleitos pelos Congressos Populares e são responsáveis por executar as decisões.
Depois, essas decisões se executam através dos Comitês Populares. Eles substituem a administração governamental clássica. São eleitos pelos Congressos Populares e são responsáveis por executar as decisões.
Todas as decisões se tomam no Congresso Geral do Povo, que se reúne a cada ano. Considero que este regime é de absoluta necessidade, é uma forma natural de governo. É importante, não só para a Líbia, mas para outros países, para todo o mundo. Jamahiriya significa justamente o poder das massas, quando as massas avançam, quando estão em marcha.
Já não é tempo de ficar atrás. Consideramos, por exemplo, que a Revolução francesa foi a expressão da era das Repúblicas. Significou a abolição do poder das monarquias. Foi um passo para o mundo. Agora chega a hora das massas, é evidente. A própria realidade do mundo o está indicando. Chega o momento em que as massas verdadeiramente devem exercer o poder. É um caminho muito difícil, muito longo, mas é o único que pode levar a justiça para todos.
S.C. - Coronel Kadafi, alguns dos profissionais que têm opinado sobre o Livro Verde, sugerem que a falta de representação seria uma utopia. O que é que o senhor opina sobre isso?
Kadafi: Se em algum momento digo que a mulher não é uma ovelha, estou dizendo-o para um povo onde os ricos trocavam mulheres por ovelhas. E a partir dessas palavras começa a educar-se uma população, dando-lhe outros elementos para seu raciocínio. Então a gente diz palavras que estão destinadas ao povo, a criar consciência em um povo com determinada cultura ou tradição. Muitas tradições, inclusive, estão contaminadas pelas tradições do colonizador e acabaram ficando para nós.
Por isso peço respeito a nossas formas e palavras. A experiência da Jamahiriya demonstra que não é uma utopia, mas uma realidade. Os Congressos Populares, os Comitês Populares estão funcionando.
Isso permitiu à Líbia o desenvolvimento atual que tem e você mesma pode comprovar com toda liberdade que isso é uma realidade. Ninguém pode representar melhor o povo do que o próprio povo.
S.C. - Vencer e derrotar culturalmente o colonialismo deve ser um passo difícil.
Kadafi: Eu digo que o colonialismo pôde vencer na etapa passada graças aos traidores. Os traidores realizam o papel de auxiliares do inimigo na história, atuando contra suas pátrias e seus povos.
S.C. - Vocês consideram os Congressos Populares Básicos como uma fórmula ideal para essa liberdade autêntica de decisão das massas?
Kadafi: Sim, nós devemos buscar fórmulas para que se ponha em prática a verdadeira vontade dos povos. Pensamos que não há democracia sem Congressos Populares nem Comitês. O aparato dos parlamentos não está baseado sobre leis naturais. É um raciocínio simples. Nós não podemos pensar como outra pessoa.
São aspectos naturais, e por isso pensamos que é muito difícil que uma pessoa que tem uma vida muito folgada, com riquezas, que come bem todo dia, a quem não lhe falta nada, possa entender o problema, o drama dos que não têm nada, nem casa, nem comida. Não se pode entender facilmente o pensamento dos explorados ou marginalizados. É um pensamento difícil de interpretar e experimentar, se não é próprio.
S.C. - Como se tomam as decisões em política exterior?
Kadafi: Em princípio, um dos elementos básicos em que está assentada a Jamahiriya, é justamente o apoio e a solidariedade com todos os povos do mundo que lutam por sua libertação. Isto já está aceito como princípio básico. Corresponde à própria existência da Jamahiriya.
Não é necessário que haja uma pessoa que decida e ordene. São os próprios Congressos. Isto impede que as grandes decisões caiam em mãos de uma só pessoa ou pequeno grupo de pessoas e se elimina o perigo de que prevaleçam interesses mesquinhos ou mecanismos individuais.
Ronald Reagan se arroga o direito de decidir o destino de todo o povo ao qual pertence. A decisão do presidente estadunidense pode ser grave e fatal para seu povo, mas este não pode decidir nada para evitar o desastre. Pode-se dizer que o povo norte-americano não toma nenhuma decisão em política exterior, nem interna. Inclusive, Reagan representa uma minoria absoluta dentro da população dos Estados Unidos. Todos os presidentes de Estados Unidos são eleitos por uma minoria absoluta.
S.C. - Não deve ser fácil esta experiência, que vocês estão realizando, considerando a situação em que se encontrava o povo líbio na época do triunfo da Revolução.
Kadafi: A Revolução significa uma mudança de realidade, uma mudança para melhor. É necessário enfrentar a nova realidade de uma mudança contínua, em que se devem superar etapas sociais, econômicas, culturais e outras. Nós consideramos que ninguém pode nem deve desprender-se de sua cultura de origem, mas é necessário adaptar-se aos tempos modernos, sem perder a relação com culturas e tradições.
Lamentavelmente existem aqueles que não podem admitir as mudanças. Existem mentalidades fechadas. Estamos lutando contra essas mentalidades, mas são as novas gerações que assumem as grandes transformações. E também existem os que trabalham para os inimigos dos povos, para os invasores.
S.C. - O senhor deve conhecer o que se escreve sobre a Líbia, e, especialmente em países europeus, o que se diz do senhor, as críticas ao Livro Verde…
Kadafi: Sim, conheço tudo. Há os que chegaram a me entrevistar e não publicaram uma só frase do que eu disse. Atribuem-me palavras que não são do meu uso. Mas eu sei a quem representam os jornalistas que fazem isso, os que nos tratam como se fôssemos ignorantes, os que enganam. Eles representam os interesses do que de pior existe no mundo, dos que são capazes de invadir e dominar povos, matando e matando, das empresas que se apoderam e roubam os recursos dos povos, os que fazem a guerra, sem pensar nos povos em nenhum momento. Jornalistas dos países coloniais são responsáveis por milhões de mortes em nossos povos. Não me importa o que eles digam. São os mesmos que ajudaram os nazis, porque sempre estão junto aos grandes poderes. Eu sei tudo o que dizem, nosso povo o sabe. Mas sabemos o que há por trás disso. Querem nosso petróleo. Nunca nos perdoaram.
Querem retroceder a Líbia para o colonialismo. Olhem o país que estamos construindo, as cidades, as estradas, as obras para irrigar o deserto. Não nos perdoam e então estamos loucos, somos imensamente maus. Assim é toda a história.
As teorias burguesas fracassaram. Ao final disso, só pode surgir uma classe egoísta. Como reação a esse egoísmo e individualismo feroz, se apresenta o marxismo. O marxismo enfrentou o problema das classes dominantes e egoístas, mas ainda falta resolver definitivamente muitos problemas básicos. Mas é um caminho muito diferente do capitalismo.
A Terceira Teoria é um esforço para modificar, inclusive enriquecer no que for possível, outras teorias e fazer realidade a verdadeira era do poder do povo.
Acreditamos no socialismo. Devemos refletir a verdade e buscar permanentemente as formas de refletir os verdadeiros sentimentos dos povos e dar soluções reais. Existem muitos esquemas fechados. É uma luta constante entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto.
Nós sabemos que demos bons passos e por isso estamos ameaçados e vamos estar ameaçados sempre, façamos o que façamos, se não obedecemos a tudo o que se nos quer impor, como fazem outros no mundo.
S.C. - Desejaria que falasse do que sucede com os Estados Unidos, já que me entregaram documentos que assinalam uma quantidade de agressões desse país contra a Líbia. Poderia aprofundar mais sobre a política dos Estados Unidos em relação à Líbia e o enfrentamento permanente que se adverte?
Kadafi: Quando eliminamos as bases estrangeiras do território líbio e tomamos medidas como assumir o controle da produção de petróleo, entre outras, a Revolução enfrentou o poder imperial e colonial e as poderosas empresas transnacionais. Então vimos a poderosa propaganda contrária às mudanças produzidas na Líbia. Isso influiu em alguns governos árabes altamente dependentes das metrópoles coloniais, que voltaram as costas ao velho sonho da unidade.
Nossas mudanças a favor do povo e a utilização dos recursos petroleiros para o crescimento e desenvolvimento verdadeiro, e para a justiça com o povo, demonstravam a corrupta forma como alguns administram seus recursos, deixando de fora os seus povos. Quando viram que a Líbia era importante para os povos da África do Norte, os Estados Unidos se puseram à frente na campanha contra nós.
Desde esse momento começou essa campanha para nos mostrar como país terrorista. Em 1981 me nomearam como "o inimigo público número um dos Estados Unidos". O presidente Reagan, com esses argumentos, aumentou a ajuda militar a seus principais aliados, Egito, os emirados e governos mais conservadores.
Nós continuamos a luta pela unidade árabe, e tivemos a primeira experiência: as tropas dos EUA estacionadas em nosso território se retiraram pacificamente. Empreendemos então um passo estratégico para entabular amizade com os Estados Unidos, baseada no respeito mútuo, mas esse país respondeu à nossa iniciativa com a mesma hostilidade com que havia respondido a Nasser. Tomou medidas contra a Líbia, embargos, atitudes políticas e informativas muito desfavoráveis. E isso foi se agravando.
Essa política não deixou alternativa para iniciativas de amizade com respeito mútuo. E tivemos que nos acostumar e estudar a possibilidade de um enfrentamento militar. Eu lhe digo que o enfrentamento depende tão só dos Estados Unidos, que tem que suspender as medidas unilaterais militares que tomou, e que constituem uma ameaça para a independência do país. Deve evacuar suas bases da ilha de Masira, de Muscat, Omã e Somália e retirar seus aviões Awacs da Arábia Saudita, pondo fim à ocupação do Egito e distanciando suas frotas e força aérea das fronteiras árabes líbias, no Mediterrâneo. Se não há uma atitude justa dos Estados Unidos, um enfrentamento armado e a criação de um estado de guerra serão, desgraçadamente, uma possibilidade em qualquer momento.
Nós somos responsáveis por defender nossa nação e temos o direito à legítima defesa se nos atacam. Se uma guerra estourasse, seriam os Estados Unidos que a teriam imposto, já que nunca agredimos esse país, nem combatemos os norte-americanos em suas terras, como tampouco instalamos bases militares em seu território, nem violamos seu espaço aéreo ou suas águas jurisdicionais. Não são nossos soldados que foram aos Estados Unidos, cruzando tantos quilômetros de oceano.
Temos já sofrido todo tipo de violações do território e do espaço aéreo. Também dizemos que os EUA devem saber que o petróleo dos árabes pertence a eles, que é o recurso mais importante e a existência e sustento da vida de nossos povos.
Porém, seus governos fingem desconhecer essa realidade e consideram o petróleo árabe unicamente como um problema vital para sua segurança e não como uma questão de vida ou morte para o povo árabe, que é o seu dono. Nós, como todos os povos árabes, temos direito a lutar contra os que invadem e ocupam nossos territórios. Temos visto a conduta dos Estados Unidos de fornecer armas, como o fazem com Israel ou Egito. Eles ajudaram à aniquilação do povo palestino e libanês. Os árabes, como qualquer povo, têm o direito e o dever de defender suas terras.
Os Estados Unidos têm duas alternativas. Ou empreender o caminho da paz e retirar suas forças da nação árabe e de todas suas fronteiras, deixando o petróleo para seus donos, adotando uma atitude neutra no Oriente Médio, ou continuar no caminho da agressão e da guerra, como estamos vendo. Tentei dizer tudo isso e enviei mensagens em 1980 ao então presidente James Carter, que postulava um segundo mandato, e a Ronald Reagan, para lhes explicar a situação e a possibilidade de estabelecer relações justas. Não aconteceu nada. Chegou Reagan e avançou cada vez mais a agressão.
Trataram-nos como terroristas, e com todo o direito de nos agredir. Em realidade, são eles os que têm levado adiante campanhas provocadoras, terroristas contra nossos povos. Em 1973, seus aviões decolaram de um porta-aviões durante uma manobra da VI Frota para nos provocar sobre a Baía de Sirte. Em outubro desse ano recorremos às Nações Unidas para advertir que a Baía de Sirte e suas águas jurisdicionais são líbias e que nosso país tem exercido sempre a soberania nessa zona estratégica, que é um ponto vital e de segurança para nosso país.
Resolveu-se a nosso favor, mas os Estados Unidos nunca cumprem esse tipo de resolução e continuaram violando a soberania em Sirte, uma e outra vez. Temos uma longa lista de agressões e já em 1977, quando demos os passos mais importantes para nosso povo, a Líbia foi incluída na lista dos países que os EUA consideravam hostis "por ajudar e contribuir para o terrorismo internacional".
Em 1978, bloqueou-se a Líbia, congelando importações e exportações. Temos um registro muito extenso de ataques, provocações e ações injustas, que não são só militares, mas também políticas, como as que denunciamos em agosto de 1979. Em maio de 1981, descobrimos células de conspiradores dentro do país. E, por outra parte, Washington declarava que ajudaria a todos os países africanos, que, segundo seu ponto de vista, se sentissem ameaçados pela Líbia. Nós nunca ameaçamos a outro país.
Poderíamos encher páginas e páginas, livros inteiros, sobre o que os Estados Unidos fizeram unilateralmente e ilegalmente contra nós e seguem fazendo. Conhecemos mais de uma centena de planos da CIA para me matar, advertimos o Congresso dos Estados Unidos sobre isso e a possibilidade de que nesses atentados e operações fossem assassinadas milhares de pessoas na tentativa de destruir objetivos militares e civis. Fizemos tudo o que um povo sério pode fazer para denunciar essa situação.
A resposta tem sido elevar a agressão. Tudo isso não só ameaça a Líbia como põe em perigo a paz do mundo. As informações e as campanhas estadunidenses mostram a Líbia como um estado terrorista. Porém, os que fazem terrorismo são os Estados Unidos contra nós, contra nosso povo. O único verdadeiro terrorista internacional são os Estados Unidos e seus sócios mais próximos.
Acusam-nos de qualquer atentado no mundo sem prova alguma. Mas isso não lhes importa. Dão por certo fatos supostos e tudo é válido para um país como os Estados Unidos, que nunca vacilaram na sua história em cometer crimes, invasões, massacres, que realizaram e realizam atentados sem que ninguém os castigue, que se dá ao direito de tomar represálias contra qualquer país que tenta trilhar um caminho independente.
Tentei resumir essa longa história de agressões que temos suportado, não só nós como muitos povos no mundo. E em todos os casos têm direito a defender-se. Um direito natural.
EPÍLOGO NECESSÁRIO
Em 1986 eu tinha retornado à Líbia para entrevistar mulheres e jovens e observar novos e grandes avanços sobre tudo o que se tinha feito para regar parte do deserto e conseguir se auto-abastecer em alimentos. Realizava-se um Congresso de Partidos políticos de esquerda e movimentos de libertação quando se conheceu a presença da VI Frota dos Estados Unidos que bombardearia Sirte, ao que tudo indica tentando localizar a família de Kadafi.
Os participantes do Congresso foram tirados rapidamente da Líbia. Poucos dias depois produziu-se o bombardeio dos Estados Unidos sobre Trípoli, onde morreram centenas de pessoas, entre elas vários estudantes, já que se atingiu a residência onde moravam. Nesse bombardeio foi assassinada uma filha de Kadafi, de apenas três anos, e feridos dois de seus filhos homens. Os aviões norte-americanos foram abastecidos no ar pelos israelenses.
De tudo isso muito poucos falaram nesses dias, antes da decisão criminosa do Conselho das Nações Unidas de abrir as portas a uma intervenção militar injusta e irracional, deixando para trás o caminho da negociação e da paz, cujas portas estavam abertas, como bem sabem todos os diplomatas.
* Jornalista argentina, correspondente para a América do Sul do diário mexicano La Jornada. Autora do livro A Operação Condor que denuncia crimes cometidos pelos Estados Unidos contra os povos da América Latina, entre outras obras.
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